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quarta-feira, 1 de maio de 2019

Suicídios

Suicidar. Verbo pronomial essencial. Suicidar-se.
Tenho visto frequentes construções com o verbo suicidar-se sem a partícula reflexiva. Em algum momento foi apontado o pleonasmo, já que suicidar já quer dizer matar-se.  A partir daí, foram pipocando notícias frias com "Fulano suicidou".
Não consigo me pacificar com o suicídio sem a reflexão. Pensei que talvez o suicídio do melancólico precise ainda mais das redundâncias reflexivas. A notícia de um suicídio melancólico precisaria ser dada com um "ele suicidou-se a si mesmo sozinho", para aproximar-se um pouco da dor contida neste ato de alguém despedaçado e multifacetado.
O suicídio do depressivo neurótico, talvez esse, possa ser anunciado com um "suicidou-se". Esse sujeito que se suicida estando dividido necessariamente entre os dois verbos: matar e morrer. 
Por isso tudo não consigo suportar a secura do suicidar. Matar-se sem que reste alguém que morra.

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Dança d'onça

Veio a dança atiçar meu coração.
E veio leve, seguindo os veios dos meus rios tortuosos e doces. Ora seiva, ora lama, ora sangue, ora água límpida que deságua, onde?. Ora pedra.
Movo ou paro. Posso. Possuo a imensa fluidez da vida em meio peito. E arrebato, arrebento, arranco tronco e assusto vento.Invento. Amanso. Acanho.
Tranço braços, mãos, emoções baratas. Assento.
Volto.Passo. Passo. Ponte. Aporte. Amparo. Aparo. Espio. Esvai.
Sem aviso. Cutuquei a dança com vara curta.
Volta?

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Pó de tempo

Então me dei conta. E naquele momento me senti invadida por uma onda desagregadora de emoções. Tudo estava subitamente fora de lugar. Todas as caixas da memória reviradas, o sótão, a poeira. Setenta anos de história posto ao chão e disposto em movimento.
Foi então que eu vi que havia nos escombros cartas e mapas de navegação.
E quis, mais que tudo dispor de tempo.  Tempo para admirar os escombros.  Tempo para colocar as coisas em fluxo, para descobrir em quais rios jogar cada peixe, cada pedra, cada alga que antevia.
E quis mais. Porque nos escombros, mais eu vi, mais via, mais vivia.
Doíam os ossos. Meu olhar seguia. Uma pedra entre eles se mostrava. Não a reconhecia. Quis sentir a pedra. Quis parar o tempo. Quis vê-la mais perto. E ela escorregou e encontrou seu fluxo, caindo pelos olhos.
Há ainda tanto a tratar. Setenta anos de história esparramada em meu corpo. Milhares de dejetos misturados em meus tecidos. Cada um deles único, cada um deles próprio, esperando sua hora de desaguar.
E quis que parasse o mundo, que nada mais externo me alcançasse. Que o tempo fosse todo feito de pontes, poemas, fotografias, mapas e cartas de navegação. E que o resto só existisse na chegada.

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Desastre

Trago dentro todo o choro do mundo em barragem.
Tenho a dor tecida nos músculos, a tristeza envolvendo os órgãos e revolta diluída em ácido no estômago.
Hoje o nome da vida é cansaço e o sabor é desgosto.
Para hoje, o saber não basta. Para hoje é rompimento do dique da lama de dejetos e rejeitos resultante da longa mineração dos meus afetos. Fujam. Os detritos são altamente contaminantes.
Aqui, nada Vale a pena e nada nada no Rio Doce.

sábado, 18 de abril de 2015

Num dia mais esquizofrênico, olhei no espelho e disse:
--Vamos?
-- Vamos quem?
-- Nós dúzias.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Me dá um desconto.  Não sei contar. Tem aquela da pessoa invisível. Mas não tem graça nenhuma. Aquela, que um dia de repente descobre que está invisível, sabe?
Vai numa reunião de trabalho e ninguém fala o nome dela. Mostram o trabalho como se ele tivesse aparecido do nada. Ela acha que ficou louca, mas não tava louca nada, só tinha morrido um pouco. Era só um pouco, porque a invisibilidade era seletiva. Umas pessoas a viam, outras não.
Ela ficou muito preocupada, mas continuava trabalhando, sem problemas.  Vivia a vida normal, mas muita gente não a via. Uma vez foi ao médico do convênio e ele não a viu de jeito nenhum. Ela tentou, tentou, mas nada.  Daí desistiu.
Não dava muito prá fazer compras no supermercado, mas no mercadinho da esquina era perfeito. O melhor lugar para fazer compras era a feira livre. Lá falava com todo mundo e até uns vizinhos que nunca a viam, na feira conseguiam enxergá-la.
Um dia, dirigindo, bateu o carro num moço alto e bonitão, mas com cara de poucos amigos. Ele desceu furioso do carro e quando ia lançar seu vozeirão contra ela, parou. Ficou atônito por uns minutos.  Não tinha ninguém dirigindo aquele carro? Ou ele estava louco?
Foi aí  que ela percebeu que era um superpoder: tinha ficado invisível para aqueles que não sentiam nenhuma empatia por ela. A liberdade que tinha agora era maior do que a que jamais tinha sonhado. Os seus amigos nunca notaram a diferença.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Segredo

Não conto. Não conto.
Assim fiquei até o sino tocar. Um sino de Vegas. Um sinal. Uma representação absurda.
O sino tocou e ela veio. Veio rápido. Desconectada. Tentando outra representação. Uma que fizesse sentido. Mas nada fazia sentido na vontade daquele senhor.
Ele se acreditava. Engolia as próprias palavras, sem mastigar. As palavras que deixava sair eram "educativas". Até poderiam ser, se não fosse a ironia. Ironia grosseira, áspera. Mas ele acreditava que aqueles outros, que atendiam a sinos, não decifrariam as palavras não ditas, as malditas.
Acreditava que nós outros, espectadores, acharíamos magnânimo o seu esforço educativo, seu espetáculo. Outra representação.
Agora conto. Conto até 10. Conto mais 100 enquanto mastigo, sem conseguir engolir. Não pelos defeitos supostos na comida ora crua, ora grudenta, ora, ora. Não engulo a cena, o som do sino, o sinal inequívoco da diferença de humanidades, a balança pendendo despencadamente para o lado dela. Ele, em seu prato, tentava colocar o peso dos títulos, dos diplomas, do dinheiro, da arrogância. Mas quanto mais empilhava posses e poses, menos o prato pesava de humanidade.
A pretensão não tem massa.
Pronto, contei.