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segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Segredo

Não conto. Não conto.
Assim fiquei até o sino tocar. Um sino de Vegas. Um sinal. Uma representação absurda.
O sino tocou e ela veio. Veio rápido. Desconectada. Tentando outra representação. Uma que fizesse sentido. Mas nada fazia sentido na vontade daquele senhor.
Ele se acreditava. Engolia as próprias palavras, sem mastigar. As palavras que deixava sair eram "educativas". Até poderiam ser, se não fosse a ironia. Ironia grosseira, áspera. Mas ele acreditava que aqueles outros, que atendiam a sinos, não decifrariam as palavras não ditas, as malditas.
Acreditava que nós outros, espectadores, acharíamos magnânimo o seu esforço educativo, seu espetáculo. Outra representação.
Agora conto. Conto até 10. Conto mais 100 enquanto mastigo, sem conseguir engolir. Não pelos defeitos supostos na comida ora crua, ora grudenta, ora, ora. Não engulo a cena, o som do sino, o sinal inequívoco da diferença de humanidades, a balança pendendo despencadamente para o lado dela. Ele, em seu prato, tentava colocar o peso dos títulos, dos diplomas, do dinheiro, da arrogância. Mas quanto mais empilhava posses e poses, menos o prato pesava de humanidade.
A pretensão não tem massa.
Pronto, contei.

sábado, 13 de dezembro de 2014

Walking on my own shoes

A arrogância é um par de sapatos que calço às vezes.  Mas eles têm saltos muito altos e finos. Eles têm bico fino demais para meus pés largos. Os pés ficam machucados, com a dor de uma aparente elegância de difícil sustentação.

sábado, 29 de novembro de 2014

Acompanhava o relógio.tic, tac, tic, tac.tic.prulhurufpt. Um folhar de páginas pareceu sobrepor o tac. Foi daí que percebi que meu tempo se embaralhou. Foi só então que percebi as notícias. Logo fez sentido.  Naquele instante o sentido todo de tudo me incorporou. tac. passou.

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Sobre óculos e visões

A campanha “Chega de Fiu Fiu” está fazendo um documentário a partir da filmagem através de microcâmeras escondidas em óculos. O objetivo é registrar o ato abusivo e confrontar o agressor, mostrando a ele que aquela atitude não agrada, não é bem-vinda.
De início parece quase ingênuo. Parece que a pessoa que faz as gracinhas, as cantadas, já sabe que aquilo é agressão e escolhe a atitude com o fim claro de incomodar. Portanto, avisá-lo parece bobagem. Mas não é.
Muitas das atitudes que reproduzimos sem pensar, sem empatia, afetam negativamente o outro sem que nos demos conta.  Nossas ações são cotidianamente agressivas e invasivas. Será que escolheríamos fazer isso se não fosse aceito, ou simplesmente se fôssemos mais empáticos?
Como o fulano vai saber o quanto é invasivo e agressivo, se viu isso o tempo todo desde que nasceu? Quem contou prá ele como é ser destratado desta forma, quem educou?
É claro que os pais e mães de meninas sempre se incomodam com isso, sempre se preocupam. Mas mesmo se preocupando, ou exatamente por isso, acabam por educar a menina sobre como se vestir, como se proteger, como se enfeiar, ou seja, também acreditam que a agressão é direcionada pela beleza, pela estética, pelo desejo. Só que não é.
A agressão é uma reação mecânica, tribal e social.  Não tem quase nada a ver com a pessoa do agressor e não tem nada a ver com a pessoa agredida. As frases são sempre as mesmas, repetidas conforme o repertório do fulano, para qualquer ser que seja identificado com o feminino objeto. 
Explicar ao agressor coloca a pessoa agredida no lugar de sujeito e sujeita o agressor a uma oportunidade para reflexão (sujeito vê outro sujeito refletido). Abre a porta para a empatia, portanto.
É claro que nada é tão simples (ou melhor, tem muita complexidade escondida no texto acima e nos objetivos do documentário). Há desdobramentos de sobra, nos aspectos legais, sociais e psicológicos envolvidos em cada situação vivida por cada par agressor-agredido. No entanto, o que mais me fez pensar é a ideia do uso de óculos para tentar corrigir a distorção da visão a que estamos submetidos.

Pareceu-me lindo e simbólico. Imaginei uma sociedade que tivesse óculos empáticos, que nos permitisse ver o outro, qualquer outro, a partir da visão dele mesmo. A expressão inglesa “walk on my shoes” fica pequena diante desta ideia. Mais que trilhar os mesmos caminhos, mais que reconhecer as dificuldades pelas quais outros passaram, o desafio empático é ver ou outro como ele vê a si mesmo e nos ver como o outro nos vê. É sermos sujeito onde o outro nos sujeita e não sujeitá-lo onde o objetamos. Mudar a sintaxe dos nossos verbos pode idealmente mudar a forma como nos relacionamos. Essa pode ser a evolução do uso politicamente correto das palavras. Vai ver que era isso que pensaram quando propuseram escolher outras palavras para designar as diferenças. Só que acredito que mudar o adjetivo não basta. É necessário transformar o sujeito através das suas ações (verbos) e as relações com seus objetos diretos ou indiretos.